Academia.eduAcademia.edu
O MICROSSISTEMA DE FORMAÇÃO DE PRECEDENTES JUDICIAIS VINCULANTES PREVISTO NO NOVO CPC THE MICROSYSTEM OF BINDING PRECEDENTS established by THE NEW BRAZILIAN CIVIL PROCEDURE CODE Humberto Dalla Bernardina de Pinho Martin-Flynn Global Law Professor na University of Connecticut School of Law Professor Associado na UERJ Professor Titular na Estácio Roberto de Aragão Ribeiro Rodrigues Doutor em Direito Processual pela UERJ Advogado da União Área do Direito: Processual; Civil Resumo: Ao tratar dos mecanismos de julgamento por amostragem contemplados no novo Código de Processo Civil, sustenta-se a existência de um verdadeiro microssistema voltado à formação de teses jurídicas centrais aplicáveis a ações e recursos seriados. Palavras-chave: Jurisprudência – precedentes judiciais vinculantes – microssistema previsto no novo CPC. Abstract: This paper argues that the bellwether trials mechanisms specified by the new Brazilian Civil Procedure Code set a microsystem of binding precedents applicable to repetitive actions and appeals. Keywords: Jurisprudence - binding precedents – microsystem specified by the New Brazilian Civil Procedure Code. Sumário: 1. Introdução. 2. Conceitos basilares para a compreensão do tema: jurisprudência, precedente judicial e verbete de súmula. 3. Precedentes judiciais típicos da doutrina do stare decisis x precedentes judiciais vinculantes na experiência brasileira. 4. As regras estruturantes do novo CPC quanto à uniformização da jurisprudência e à formação de precedentes judiciais vinculantes. 5. A modulação temporal das alterações jurisprudenciais e da superação de precedentes judiciais vinculantes. 6. Considerações finais. 7. Referências. 1. Introdução O novo Código de Processo Civil, Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015, tem como um de seus motes a uniformização, estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência dos Tribunais, consoante disposto no caput de seu art. 926. Não deve parecer estranho ao intérprete tal configuração da nova Lei Processual, já que o modelo anterior, do Código de 1973, ao possibilitar a coexistência de julgamentos díspares mesmo em casos que envolvessem a mesma questão jurídica central, acabava por violar constantemente os princípios constitucionais da isonomia e da segurança jurídica. Além da afronta a tais princípios, não se pode desconsiderar que quando o Poder Judiciário não se ocupa da harmonização de seus posicionamentos, perde credibilidade, legitimidade e a confiança da sociedade. Com o escopo de mitigar os efeitos deletérios produzidos por julgamentos divergentes acerca de uma mesma matéria, mais especificamente acerca de uma mesma questão jurídica que serve de fundamento para demandas repetitivas, o CPC de 2015 intensifica e aprimora o tratamento dispensado à temática da uniformização jurisprudencial. A partir da Constituição da República de 1988, a responsabilidade de assegurar o cumprimento das normas em todo o país e a uniformização da jurisprudência nacional foi repartida entre o STF (casos constitucionais) e o STJ (casos infraconstitucionais). As reformas sofridas pelo CPC de 1973, a partir da década de 90, passaram a conferir superior efeito uniformizador e vinculante à jurisprudência, ao desenvolverem diversos mecanismos que permitem a aceleração do procedimento, mediante a improcedência liminar do pedido; Art. 285-A, inserido pela Lei. 11.277, de 7 de fevereiro de 2006. o impedimento de recursos Art. 518, parágrafo 1º, introduzido pela Lei 11.276, de 7 de fevereiro 2006. e o seu julgamento monocrático pelo relator, quando existente súmula ou posicionamento reiterado do tribunal. Já os primeiros precedentes com efeito vinculante surgiram no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade. Com efeito, o STF, ao decidir, por meio de ação direta, a respeito da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma norma, acaba por produzir precedentes com eficácia erga omnes e efeitos vinculantes em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal. A Constituição Federal de 1964, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 16, de 26 de novembro de 1965, previu originalmente a ação direta ao STF, cuja amplitude foi estendida em reformas constitucionais posteriores, até alcançar os moldes atuais, previstos na Constituição Federal de 1988 (com redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 3 de março de 1993), com a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade. Tais procedimentos somente vieram a ser regulamentados, porém, pela Lei 9.868, de 10 de novembro de 1999. No ano de 2004, por meio da Emenda Constitucional nº 45, A EC 45/2004 alterou a redação do art. 102, § 2º e introduziu o art. 103-B na Constituição Brasileira. instituiu-se a possibilidade de o STF editar súmulas com efeitos vinculantes, mantida a eficácia persuasiva dos verbetes já editados, bem como se limitou a apreciação dos recursos extraordinários pela Corte Constitucional àqueles que apresentem “repercussão geral”. Na sessão plenária de 30 de maio de 2007, o STF editou as três primeiras sumulas com efeitos vinculantes na experiência brasileira. Neste cenário, pode-se sustentar que a jurisprudência não é reconhecida no Brasil como uma fonte formal do direito, eis que não possui força de lei. Ao contrário, atribui-se aos precedentes, em geral, um valor complementar, haja vista expressarem, de forma subsidiária, o conteúdo e o verdadeiro sentido das regras e dos princípios que integram o ordenamento jurídico nacional. Em outras palavras, no modelo nacional os juízes não têm o dever funcional de seguir, em casos sucessivos, as decisões anteriores proferidas em situações análogas. Contudo, o Superior Tribunal de Justiça, cuja função primordial é a de zelar pela uniformidade de interpretação da legislação federal, já asseverou a importância do respeito aos precedentes. Constata-se, por outro lado, uma nítida tendência evolutiva no sentido de se emprestar cada vez mais importância à jurisprudência e aos precedentes judiciais, na esteira do que já ocorre em muitos ordenamentos filiados ao sistema continental-europeu. O fenômeno da concessão de maior eficácia às decisões judiciais pode ser identificado nas numerosas reformas havidas na legislação processual brasileira nas últimas décadas. Em decorrência dessas consecutivas modificações, encontram-se, em nosso sistema atual, precedentes com eficácia de níveis distintos, quais sejam, persuasivos, impeditivos de recursos e, em grau máximo, vinculantes. A atribuição de força vinculante aos precedentes judiciais é sobremaneira conveniente para a racionalidade da jurisdição em um país de dimensões continentais como o Brasil, no qual o grande número de tribunais estaduais e federais inspira, necessariamente, uma superior preocupação com a uniformidade do Direito. Conforme se procurará demonstrar, no entanto, o termo “precedentes judiciais” não se revela como o mais adequado para a realidade brasileira, notoriamente diversa daquela há muito arraigada nos ordenamentos filiados à common law. Ciente da conveniência – ou mesmo da real necessidade – de promover a harmonização dos entendimentos emanados do Poder Judiciário, o legislador pátrio veio a ampliar, por intermédio do novo CPC, as hipóteses em que algumas decisões judiciais revestir-se-ão da qualidade de verdadeiras decisões definidoras de teses jurídicas, as quais passarão a condicionar a atuação futura de todos os juízes e tribunais. 2. Conceitos basilares para a compreensão do tema: jurisprudência, precedente judicial e verbete de súmula. Antes de expor os argumentos aptos a demonstrar a existência de um microssistema de formação de precedentes judiciais no novo CPC, faz-se necessária uma rápida explanação das noções elementares e diferenças entre jurisprudência, precedente judicial e verbete de súmula. Jurisprudência seria o conjunto de decisões judiciais reiteradas num mesmo sentido acerca de determinada matéria. Na definição de Eduardo Cambi, “jurisprudência é a forma concordante em que os órgãos judiciários se pronunciam para resolver casos similares. Em outros termos, são as decisões concordantes que criam critérios objetivos de julgamento.” CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 153. A jurisprudência pressupõe, portanto, uma pluralidade de decisões proferidas em diversos casos concretos, nota que a distingue do precedente, que prescinde desse caráter quantitativo, já que pode surgir a partir de um único caso submetido ao Poder Judiciário, hipótese conhecida como leading case. TARUFFO, Michele. Precedentes e jurisprudência. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 199, 2011, p. 2. Diante da singeleza do conceito de jurisprudência, passa-se desde já à noção de precedente judicial, a qual merece análise mais detida, já que consiste em mecanismo estranho à nossa cultura jurídica tradicionalmente filiada à civil law. Demais disso, é da lógica de seu funcionamento que se inspira, ainda que de forma inadequada, a maior parte dos mecanismos de julgamento por amostragem do sistema brasileiro. A noção clássica da doutrina do stare decisis, que tem como produto final o precedente judicial, desenvolvida na Inglaterra, berço da common law, parte da premissa de que casos iguais devem ser decididos do mesmo modo. “It is a basic principle of the administration of justice that like cases should be decided alike. This is enough to account for the fact that, in almost every jurisdiction, a judge tends to decide a case in the same way as that in which a similar case has been decided by another judge. The strength of this tendency varies greatly. It may be little more than an inclination to do as others have done before, or it may be the outcome of a positive obligation to follow a previous decision in the absence of justification for departing from it. Judicial precedent has some persuasive effect almost everywhere because stare decisis (keep to what has been decided previously) is a maxim of practically universal application.” CROSS, Rupert e HARRIS, J.W. Precedent in English Law, 4. ed., Oxford: Clarendon Press, 1991, p. 3. Trata-se da máxima stare decisis et non quieta movere. Stare decisis é a política que requer que as Cortes subordinadas à Corte de segunda instância que estabeleceu o precedente sigam o precedente e que não “disturbem um ponto estabelecido”. Esse princípio, aplicando a doutrina do stare decisis para estabelecer o precedente vinculante, veio da tradição do direito consuetudinário inglês para a cultura jurídica dos Estados Unidos. O precedente vinculante é, portanto, o resultado do uso da doutrina do stare decisis. COLE, Charles D. Precedente Judicial – A experiência americana. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. Revista de Processo, n. 92, out-dez/1998, p. 71-86, p. 71-72. Na doutrina nacional, vide, por todos, NOGUEIRA, Gustavo Santana. Stare decisis et non quieta movere: a vinculação aos precedentes no direito comparado e brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. O cerne da ideia de precedente judicial, que o Direito brasileiro cada vez mais procura incorporar, consiste, portanto, na atribuição de eficácia vinculante às decisões sucessivas àquelas proferidas em casos idênticos ou análogos. Neste sentido é a lição de Michele Taruffo: “Il precedente ha efficacia giuridicamente vincolante per le decisioni successive di casi identici o analoghi, e sotto questo profilo opera in modo non diverso da una norma di legge; ciò che non ha questa efficacia non è un precedente in senso próprio.” TARUFFO, Michele. Dimensioni del precedente giudiziario. Revista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 1994, p. 411-430, p. 426. A decisão que se reveste das características de um precedente judicial deve, portanto, refletir uma regra aplicável a outros casos semelhantes. O caráter vinculante dos precedentes decorre da necessidade de tratamento isonômico entre os jurisdicionados, a qual é atingida por intermédio da seleção de aspectos relevantes de um caso submetido a julgamento (ratio decidendi), com a posterior aplicação deste entendimento a casos semelhantes. Neste sentido, confira-se Teresa Arruda Alvim Wambier. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e Adaptabilidade como objetivos do direito: civil law e common law. In: Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, Vol. 172, ano 34, jun. 2009, p. 129. Importante consignar que, em sua acepção clássica, a conexão entre a elaboração de tal regra e as circunstâncias fáticas do caso concreto que serviu de base para a sua criação consiste em pressuposto inafastável à caracterização de uma decisão como precedente judicial. TARUFFO, Michele. Precedentes e jurisprudência. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 199, 2011, p. 2. O precedente consiste, portanto, no "resultado da densificação de normas estabelecidas a partir da compreensão de um caso e suas circunstâncias fáticas e jurídicas.” Os precedentes judiciais, como entendemos neste trabalho, consistem no resultado da densificação de normas estabelecidas a partir da compreensão de um caso e suas circunstâncias fáticas e jurídicas. No momento da aplicação, deste caso-precedente, analisado no caso-atual, se extrai a ratio decidendi ou holding como o core do precedente. Trata-se, portanto, da solução jurídica explicitada argumentativamente pelo intérprete a partir da unidade fático-jurídica do caso-precedente (material facts e a solução jurídica dada para o caso) com o caso-atual. Por esta razão, não se confundem com a jurisprudência, pois não se traduzem em tendências do tribunal, mas na própria decisão (ou decisões) do tribunal com respeito à matéria. De outra sorte, não se confundem com a jurisprudência porque obrigam o próprio tribunal que decidiu, sendo este responsável, tanto quanto as cortes inferiores, por sua manutenção e estabilidade. Como veremos adiante a característica da jurisprudência é atuar apenas de forma “persuasiva” e não há sentido falar em precedentes “persuasivos”. Dessa forma, exarado um precedente, sua consideração passa a ser obrigatória todas as vezes que a mesma matéria venha a ser debatida em casos considerados análogos pelo próprio órgão julgador (vinculação horizontal). ZANETI JR., Hermes. Precedentes (treat like cases alike) e o novo código de processo civil; universalização e vinculação horizontal como critérios de racionalidade e a negação da “jurisprudência persuasiva” como base para uma teoria e dogmática dos precedentes no Brasil. Revista de Processo. v. 235. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 293. Já a súmula, na acepção de José Carlos Barbosa Moreira, seria o “o conjunto das proposições em que se resume a jurisprudência firme de cada tribunal.” BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Súmula, jurisprudência, precedente: uma escalada e seus riscos. In: Temas de direito processual (nona série). São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 299-313. Os verbetes sumulares tornam mais célere o trabalho no Tribunal, uma vez que, a estes fazendo referência, podem fundamentar suas decisões de maneira sucinta e facilitada, além de reduzir os riscos de ocorrência de julgados conflitantes. Contudo, no caso do Supremo Tribunal Federal, pode haver súmula vinculante e não vinculante. As súmulas não vinculantes podem ser editadas por qualquer Tribunal e representam uma tendência de julgamento, sem qualquer caráter impositivo. O Regimento Interno do STF prevê a possibilidade de revisão de seus enunciados por qualquer ministro (art. 103). As súmulas vinculantes (art. 103-A da Constituição da República) versam sobre matéria constitucional, tendo sua edição, revisão e cancelamento regulados pela Lei n.º 11.417, de 2006. Os verbetes sumulares vinculantes podem ser editados de ofício ou por provocação de qualquer dos legitimados previstos no art. 3º da referida Lei, mas somente o STF poderá aproválas. O dispositivo fala ainda em reiteradas decisões, não precisando o número, mas deixando claro que não deve ser uma situação casuística, mas sim uma hipótese que tenha despertado entendimentos diversos nos órgãos do Poder Judiciário. Conforme se procurará expor no tópico 4, o novo Código estabelece um rol não só de verbetes sumulares vinculantes, mas também de decisões e orientações que passarão a ser necessariamente seguidos pelos juízes e tribunais de todo o país, em busca da uniformização. 3. Precedentes judiciais típicos da doutrina do stare decisis x precedentes judiciais vinculantes na experiência brasileira. Como exposto acima, a caracterização de uma decisão como precedente judicial nos ordenamentos filiados à common law pressupõe que a regra para o caso concreto tenha sido construída pelo Poder Judiciário HAZARD JR., Geoffrey C. TARUFFO, Michele. American Civil Procedure, an introduction. New Haven: Yale Press, 1993, p. 37. em estrita observância às circunstâncias fáticas do caso. FINE, Toni Jaeger. Stare Decisis and the binding nature of precedent in the United States of America. In: MOURA, Solange Ferreira de. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Coletânea de artigos científicos: celebração ao XIV Intercâmbio dos cursos de Direito da Estácio, Santa Cruz do Sul: Essere nel mondo, 2014, pp. 148/167. Ocorre que no Brasil o método de elaboração de um “precedente judicial” é completamente diverso, não podendo fazer jus a tal definição, ao menos em sua acepção clássica. Ainda que as técnicas de julgamento por amostragem tenham sido recentemente ampliadas e aprimoradas pelo CPC/2015 e produzam, tal como os precedentes típicos da doutrina do stare decisis, decisões que irradiam seus efeitos de modo prospectivo, inclusive para alcançar terceiros que não foram parte no processo no qual a decisão foi proferida, BARCELLOS, Ana Paula de. Voltando ao básico. Precedentes, uniformidade, coerência e isonomia. Algumas reflexões sobre o dever de motivação. In: Direito Jurisprudencial: volume II. Coords. Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, Luiz Guilherme Marinoni, Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 143-165, 2014, p. 146. os métodos de sua elaboração são absolutamente diversos. “Em verdade, o fato de nossa legislação admitir mecanismos ou instrumentos processuais aptos a criar padrões decisórios, com a finalidade de gerar um precedente (tipicamente brasileiro) por meio de uma técnica de decisões padrão – abstrata, geral e capaz de ensejar uma infinidade de situações díspares em um mesmo resultado legal – não nos coloca na qualidade de possuirmos um sistema de precedentes nos moldes das famílias do common law ou do civil law.” ROSSI, Júlio César. O precedente à brasileira: súmula vinculante e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 208, 2012, p. 2. Isto porque o modelo brasileiro de construção de “precedentes”, tal como o empregado na Itália, distancia-se consideravelmente da lógica desenvolvida pelos ordenamentos tradicionalmente filiados à common law. “(...) il legislatore italiano ignora in maniera totale che cosa sia il precedente: viene infatti trascurata la natura fondamentale del vero precedente, ossia – come si è detto – l’analogia tra i fatti dei due casi, e si considera come precedente uma qualsiasi affermazione astratta della Corte di Cassazione su uma quaestio juris in qualque modo riferibile al caso di specie.” TARUFFO, Michele. Le funzioni delle corti supreme tra uniformità e giustizia. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. v. XIV, p. 438-449, p. 440-441. Disponível em <http://www.redp.com.br/arquivos/redp_14a_edicao.pdf>. Acesso em: 05 jan 2015. Com efeito, ao contrário do imprescindível cotejo entre o caso no qual restou formado o precedente e o caso concreto que tem que ser julgado, atentando-se às circunstâncias específicas de ambos, Konrad Zweigert e Hein Kötz, ao empreenderem uma análise comparativa acerca do stare decisis, entendido na acepção de precedente dotado de força vinculante, exaltam a técnica pela qual os juízes de common law aproximam e relacionam o caso-paradigma no qual foi criado o precedente ao caso concreto em que têm que proferir decisão. Em contrapartida, os autores tecem duras críticas quanto à elaboração de tal operação pelos juízes de ordenamentos filiados ao civil law, ao asseverar quão subdesenvolvida nestes países é a arte de elaborar um “reasoning from case to case”, mediante o uso acrítico de ementas que precedem os julgamentos e que não contemplam os fatos subjacentes nem tampouco fornecem os fundamentos sobre os quais a decisão proferida no caso-paradigma se baseou. Admitem que haja, sim, o uso destas ementas no direito consuetudinário, mas elas servem aos juízes apenas como uma indicação preliminar acerca do conteúdo provável de suas decisões, e nunca como sucedâneo de sua investigação detalhada. ZWEIGERT, Konrad e KÖTZ, Hein. In: Civil litigation in comparative context. CHASE, Oscar G. Oscar G. Chase and Helen Hershkoff General Editors. Thomson West, 2007, pp. 158-159. o “precedente” emanado da Corte de Cassação italiana reveste-se da característica de uma máxima ou ementa de poucas linhas que enuncia uma regra em termos gerais e abstratos. TARUFFO, Michele. Le funzioni delle corti supreme tra uniformità e giustizia. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. v. XIV, p. 438-449, p. 441. Disponível em <http://www.redp.com.br/arquivos/redp_14a_edicao.pdf>. Acesso em: 05 jan 2015. No ordenamento brasileiro ocorre fenômeno semelhante, já que tal afastamento pode ser constatado com extrema nitidez nas súmulas vinculantes editadas pelo Supremo Tribunal Federal. Michele Taruffo vislumbra este fenômeno ao asseverar que o processo de formação de uma súmula vinculante não deriva da decisão em um caso concreto, porque se trata de uma enunciação interpretativa formulada em termos gerais. Assim, a súmula não se refere aos fatos que estão à base daquela questão jurídica discutida, e não pode, portanto, ser considerada como um precedente em senso próprio, mas apenas como uma decisão que exprime a escolha entre duas opiniões interpretativas relativas a normas gerais e abstratas. TARUFFO, Michele. La giurisprudenza tra casistica e uniformità. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, et alli. (Coord.) Direito Jurisprudencial: volume II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, pp. 927-937.- São exemplos nítidos de súmulas vinculantes que definem a interpretação correta de enunciados normativos as seguintes: “Súmula vinculante 5 – A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição. Súmula vinculante 11 – Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. Súmula vinculante 12 – A cobrança de taxa de matrícula nas universidades públicas viola o disposto no art. 206, IV, da Constituição Federal.” Do mesmo modo, ainda que à míngua de previsão constitucional expressa, o Superior Tribunal de Justiça quando decidia, sob o rito dos recursos especiais repetitivos previstos no artigo 543-C do Código revogado, a interpretação e o alcance que deviam ser atribuídos à determinada norma de direito material ou até mesmo processual, acabava por fixar uma tese jurídica com efeitos vinculantes, afastando-se por completo da lógica dos precedentes do sistema do stare decisis. Confira-se, a título de exemplo, o julgamento, sob o rito do art. 543-C do CPC, do Recurso Especial n.º 1110549/RS, Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 28/10/2009, no qual restou fixado o entendimento no sentido da possibilidade de suspensão de ações individuais na pendência de ação coletiva que tenha por objeto a controvérsia geradora daqueles processos. No âmbito do Direito Tributário, pode-se citar o julgamento do Recurso Especial Repetitivo n.º 1113159/AM, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 11/11/2009, no qual o STJ definiu que a base de cálculo do imposto de renda das pessoas jurídicas compreende o lucro real, o lucro presumido ou o lucro arbitrado, correspondente ao período de apuração do tributo. Disponível em http://www.stj.jus.br/SCON/recrep/toc.jsp?materia='TRIBUTÁRIO'.mat.#TIT10TEMA1. Acesso em 08 mar 2015. Os julgamentos desta espécie possuem natureza praticamente objetiva, uma vez que o interesse público de definição da tese jurídica central comum à multiplicidade de recursos idênticos se sobrepõe à disputa entre autor e réu quanto à titularidade de direitos subjetivos. Sobre o tema, são dignas de transcrição as considerações de Bruno Dantas: “Dessa forma, o recurso-piloto, por ser representativo de uma controvérsia jurídica que se repete em múltiplos e idênticos casos, tem a natureza de veículo processual hábil a deflagrar a tutela recursal pluri-individual do STJ e do STF. Por sua vez, a tutela recursal pluri-individual tem natureza jurídica de atividade estatal exercida pelo STF e pelo STJ em atenção à função nomofilática, na qual se busca primariamente dar resposta ao interesse público consistente na definição da questão de direito que subjaz aos múltiplos recursos extraordinários e especiais que repetem idêntica fundamentação jurídica. DANTAS, Bruno. Teoria dos recursos repetitivos: tutela pluri-individual nos recursos dirigidos ao STF e STJ (art. 543-B e 543-C do CPC). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 121. Corrobora esta assertiva o fato de os próprios Ministros do Superior Tribunal de Justiça reconhecerem que, sob o rito estabelecido pelo artigo 543-C, ao proclamarem a correta interpretação da legislação nacional infraconstitucional, definem verdadeiras teses jurídicas. BENETI, Sidnei. O Nurer – Núcleo de Recursos Repetitivos do STJ e o novo recurso especial. In: O papel da jurisprudência do STJ. Coordenação Isabel Gallotti...(et al.). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, pp. 817-824.- Na doutrina, Ana Paula de Barcellos alcança a mesma conclusão, partindo da premissa de que, como regra geral, os Tribunais Superiores no sistema brasileiro não se ocupam da análise e apuração dos fatos, já que assumem como ocorridos aqueles definidos pelas instâncias inferiores. Consigna, por via de consequência, que os precedentes judiciais no Brasil envolvem a definição de teses jurídicas. BARCELLOS, Ana Paula de. Voltando ao básico. Precedentes, uniformidade, coerência e isonomia. Algumas reflexões sobre o dever de motivação. In: Direito Jurisprudencial: volume II. Coords. Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, Luiz Guilherme Marinoni, Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, pp. 143-165, p. 164. Constituem exemplos destas teses jurídicas os seguintes temas representativos de controvérsia que se repete em milhares de ações: planos econômicos, questões bancárias relativas a juros, comissões de permanência, fixação de prazos prescricionais, legalidade da cobrança de taxas, planos de saúde, previdência privada e pública e questões tributárias em geral. BENETI, Sidnei. O Nurer – Núcleo de Recursos Repetitivos do STJ e o novo recurso especial. In: O papel da jurisprudência do STJ. Coordenação Isabel Gallotti...(et al.). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, pp. 817-824, p. 820. A dissociação dos casos concretos submetidos a julgamento sob a sistemática do revogado artigo 543-C, agora disciplinada pelos artigos 1.036 a 1.041 do CPC/2015, revela-se ainda mais nítida em temas criminais, tais como a questão da configuração ou não de continuidade delitiva, de concurso formal ou material nos delitos, do direito à progressão de regime diante de prestação de trabalho e cumprimento de atividades adicionais em presídios e etc. BENETI, Sidnei. O Nurer – Núcleo de Recursos Repetitivos do STJ e o novo recurso especial. In: O papel da jurisprudência do STJ. Coordenação Isabel Gallotti...(et al.). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, pp. 817-824, p. 823. Conclui-se, portanto, que não se revela adequado enquadrar as decisões judiciais proferidas nos mecanismos de julgamentos por amostragem previstos no sistema processual pátrio como autênticos “precedentes judiciais”, ao menos se se considerar a acepção clássica do instituto. Mais preciso, a nosso sentir, seria a definição de tais decisões judiciais como decisões definidoras de teses jurídicas. A despeito de tal imprecisão terminológica, bem como considerando que a doutrina nacional e o próprio Código de Processo Civil de 2015 emprega o termo precedente judicial, A nova Lei Processual faz menção expressa a precedente nos seguintes dispositivos: art. 489, § 1º, incisos V e VI, art. 926, §2º, art. 927, §5º, art. 988, inciso IV e art. 1.042, §1º, inciso II. este é o que será adotado ao longo do artigo para referir a estas decisões definidoras de teses jurídicas. Ressalta-se, todavia, que a acepção de precedente judicial aqui empregada não se confunde com a noção clássica do termo, conforme fundamentação ora exposta. 4. As regras estruturantes do novo CPC quanto à uniformização da jurisprudência e à formação de precedentes judiciais vinculantes. A adoção do sistema de precedentes no Brasil repousa em dois princípios de estatura constitucional: segurança jurídica "A variação injustificada quanto à interpretação judicial de um texto legal contraria o princípio da segurança jurídica e causa mais instabilidade nas relações sociais. A segurança jurídica é um instrumento de realização dos valores da liberdade, da igualdade e da dignidade: (i) da liberdade, pois quanto maior é o acesso material e intelectual do cidadão às normas que deve obedecer, maior serão as condições para que possa conceber o seu presente e planejar o seu futuro; (ii) de igualdade, pois quanto mais gerais e abstratas forem as normas, e mais uniformemente forem aplicadas, tanto maior será o tratamento isonômico entre os cidadãos; (iii) de dignidade, porque quanto mais acessíveis e estáveis forem as normas, bem como mais justificadamente forem aplicadas, melhor será o tratamento do cidadão como ser capaz de autodefinir-se autonomamente. A insegurança jurídica gerada pela instabilidade nas decisões judiciais é um estímulo às aventuras processuais e até mesmo ao abuso do direito processual, além de significar um fator que inibe à observância do cumprimento espontâneo das obrigações no plano do direito material. Para se assegurar segurança jurídica, quando da aplicação dos precedentes judiciais, devem-se considerar as noções tanto de previsibilidade quanto de estabilidade. Por previsibilidade, deve-se entender a necessidade de se poder prever a consequência de uma determinada conduta, bem como a confiança atribuída ao poder estatal, que tem a função de estabelecer a qualificação jurídica sobre os fatos discutidos em juízo. Tudo isso para proteger a confiança, conforme está previsto no art. 926, § 4.o, do NCPC. Por sua vez, a estabilidade dá dimensão objetiva à segurança jurídica para se assegurar um mínimo de continuidade ao Estado Democrático de Direito, isto é, garantir a potencialidade e a eficácia da ordem jurídica aos cidadãos". CAMBI, Eduardo; HELLMAN, Renê Francisco. Precedentes e dever de motivação das decisões judiciais no Novo Código de Processo Civil in Revista de Processo, vol. 241, Mar/2015, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 429. e igualdade “O princípio da legalidade, base do Estado de Direito, só tem sentido prático se concretizado à luz do princípio da isonomia. Se houver várias regras para decidir-se o mesmo caso, como se vai saber de antemão, qual vai ser a aplicada pelo juiz, no caso de José? É inútil a lei ser a mesma para todos, se os tribunais podem interpretá-la de modos diferentes e surpreender os jurisdicionados.” WAMBIER, Luiz Rodrigues; VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa de; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Jurisprudência oscilante no STJ – Ofensa à segurança jurídica sob o aspecto da previsibilidade das decisões judiciais. In: O papel da jurisprudência do STJ. Coordenação Isabel Gallotti...(et al.). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, pp. 223-238, p. 22, embora ambos tenham a sua origem na própria ideia de legalidade. "Gli argomenti a favore di una prassi giurisprudenziale rivolta alla stabilità, piuttosto che al cambiamento sono, invero, numerosi, di varia provenienza, e persuasivi, almeno fino a quando si rimane ad un livello di astrazione molto elevato. (...) Prima di tutto abbiamo, con riferimento ai sistemi di tipo continentale, un argomento di natura “politica”, desumibile dalla struttura di un ordinamento giuridico di diritto codificato e sottoposto al principio della divisione dei poteri, che attribuisce all’attività giurisdizionale una mera funzione dichiarativa del diritto esistente. Pare chiaro che, in un quadro del genere, le istituzioni giudiziarie non possano porsi come gli agenti del cambiamento, appartenendo il monopolio di esso alle istituzioni che sono il luogo di residenza della sovranità popolare, cui spetta il compito di adeguare le regole giuridiche alle esigenze sociali, che via via storicamente si determinano. In secondo luogo viene l’argomento desumibile dal principio d uguaglianza, quale si esprime nello stringente enunciato “tratta le situazioni uguali in modo uguale”. Secondo questo punto di vista, decisioni successivamente contrastanti contravvengono al principio di uguaglianza nel contravvenire al principio di coerenza, cosicché sembra doversi consentire con l’osservazione di recente avanzata che “uguaglianza e (ossequio del) precedente rappresentano, rispettivamente, il profilo spaziale e il profilo temporale del più largo principio normativo della coerenza”. In terzo luogo si presenta l’argomento della prevedibilità. Questo argomento, di tutti il più diffuso, sottolinea come sia preferibile una prassi ispirata al rispetto del precedente, perché essa riduce la conflittualità e permette una maggiore sicurezza e programmabilità del traffico giuridico, consentendo ai soggetti di un rapporto di meglio prevedere le future conseguenze delle loro azioni, proprio in base agli indirizzi impartiti dai passati orientamenti giurisprudenziali, meglio se consolidati. In quarto luogo esiste un argomento che forse apparirà poco persuasivo, o addirittura sconveniente per la venatura di pragmatico cinismo di cui è intessuto. (...). Infine, un ultimo argomento fa leva sul rilievo della compattezza senza incrinature esibita da una magistratura le cui decisioni siano standardizzate dall’inserimento in un sistema di precedenti. Il rafforzamento della credibilità esterna che deriva dal mantenere la coerenza interna comporta un potenziamento dell’istituzione giudiziaria nel quadro dei poteri dello stato, specularmente opposto maggiore quantità di casi decisi nella medesima quantità di tempo". CHIARLONI, Sergio, efficacia del precedente giudiziario e tipologia dei contrasti di giurisprudenza in Revista de Processo, vol. 229, Mar / 2014, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 404. Quanto à segurança jurídica, é evidente que um sistema ideal deve proporcionar aos jurisdicionados uma mínima margem de segurança da decisão a ser prolatada, já que a estabilidade e a previsibilidade da ordem jurídica são elementos do Estado de Direito. Neste sentido, a variação injustificada da interpretação judicial acaba por violar a paz social pretendida. Como manifestação da segurança jurídica, a estabilidade deve ser compreendida como elemento de continuidade, destinado a assegurar aos cidadãos determinada potencialidade e eficácia do ordenamento. A previsibilidade, por usa vez, revela-se em assegurar que o sujeito possa antever as consequências jurídicas de determinada conduta que venha a adotar, bem como tutelar a sua confiança na função estatal da jurisdição. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Cada caso comporta uma única solução correta?, in WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et alli (Org.) Direito Jurisprudencial, vol. II, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2014, p. 1226. A cláusula geral da segurança jurídica impõe alguns deveres fundamentais aos tribunais. Há o dever de uniformidade, pelo qual o órgão jurisdicional deve tratar de modo equivalente os casos substancialmente iguais. DUARTE, Antonio Aurelio Abi-Ramia; BRASIL, Maria Eduarda de Oliveira, O desafio de uniformizar a jurisprudência e o papel do Código de Processo Civil de 2015 – Novos Desafios, original cedido pelos autores, p. 25. Surge, ainda, o dever de estabilidade, mantendo-se as razões que justificaram determinada decisão, sem variações injustificadas. Há, também, o dever de integridade, pelo qual o Tribunal deve manter um constante diálogo entre as matérias já decididas e os casos atuais. Por fim, há um dever de coerência, tendo em vista a eficácia externa de cada julgado. No que se refere à isonomia, tem-se entendido que a garantia de igualdade não cria apenas um dever de abstenção ao Legislativo, de criar discriminações irrazoáveis, mas, para o que interessa ao presente trabalho, destina-se também ao Judiciário, que deve assegurar que demandas iguais ou semelhantes recebam o mesmo tratamento. A racionalização das decisões judiciais, intrínseca à doutrina dos precedentes, é a concepção de que as decisões exaradas por juízes e tribunais devam ter a pretensão de universalidade para todos os casos assemelhados. Alguns autores entendem que ela deriva da ideia de isonomia, contudo, parcela da doutrina entende que a racionalização vai além da igualdade, devendo preponderar na análise do precedente, pois reforça sua vinculatividade, inclusive no plano horizontal (entre juízes de mesma hierarquia), criando uma presunção a favor do precedente, ou seja, em regra, sua orientação deve ser seguida. O ônus maior incumbirá a quem pretender afastá-lo. CAMBI, Eduardo; FILIPPO, Thiago Baldani Gomes. Precedentes Vinculantes in Revista de Processo, vol. 215, Jan/2013, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 213. A instituição dos precedentes também pode prestar contributo à razoável duração do processo. A solidificação dos entendimentos possibilita o manejo de instrumentos para acelerar as decisões de mérito dos processos assemelhados, seja na fase de conhecimento o na fase recursal. Além disso, pode desmotivar a propositura de ações que se fundem em argumentos contrários àqueles acolhidos pelo tribunal no julgamento do caso paradigma. Dentro de seu escopo primordial de promover uma superior uniformização, estabilização e vinculação da jurisprudência, o novo Código dedica um capítulo inteiro do Título I do Livro III, composto pelos artigos 926 a 928, com regras neste sentido destinadas aos tribunais e juízes. Com efeito, o caput do art. 926 traz a determinação de uniformização, estabilidade e coerência da jurisprudência, que, quando dominante, deverá ser consubstanciada em enunciados de súmula, nos termos do parágrafo 1º. Seu parágrafo 2º estabelece que os enunciados de súmula não podem se dissociar das circunstâncias fáticas inerentes às causas que lhes serviram de base. Apesar de louvável, uma vez que se revela sensível à crítica doutrinária acerca do procedimento de elaboração dos verbetes sumulares, Vide, por todos, GRECO, Leonardo. Novas Súmulas do STF e alguns reflexos sobre o mandado de segurança. Disponível em <http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=238>. Acesso em 10 jun 2015. consideramos difícil crer que tal regra será fielmente cumprida pelos tribunais brasileiros. Isto porque, conforme exposto no tópico anterior, a súmula no Direito brasileiro consiste em uma síntese, um enunciado abstrato e conciso, que resume o entendimento de um tribunal sobre uma determinada questão jurídica. Assim, ainda que bem-intencionada, a regra disposta no parágrafo 2º do artigo 926 não se coaduna com o modelo de súmula utilizado no Brasil. O relevantíssimo artigo 927 inova ao ampliar RODRIGUES, Roberto de Aragão Ribeiro. A tendência uniformizadora da jurisprudência no Projeto de Novo Código de Processo Civil. In: ROQUE, André Vasconcelos; PINHO, Humberto Dalla Bernardina de, (Org.). O Projeto de Novo Código de Processo Civil: uma análise crítica. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, p. 187. o rol de decisões dotadas de eficácia vinculante já previsto na Constituição, De acordo com o parágrafo 2º do artigo 102 e o artigo 103-A, ambos introduzidos com esta redação na Constituição da República pela Emenda Constitucional n.º 45, as decisões de mérito proferidas pelo STF nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade, assim como as súmulas aprovadas de acordo com o procedimento previsto neste último artigo, são dotadas de efeito vinculante. “Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...) § 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).” “Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Vide Lei nº 11.417, de 2006). § 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). § 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). § 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)” uma vez que, além de reproduzir as previsões de decisões do Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado de constitucionalidade e os enunciados de súmula vinculante (incisos I e II), estabelece, ainda, que produzirão efeitos vinculantes: os acórdãos proferidos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos (inciso III); os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal, em matéria constitucional, e do Superior Tribunal de Justiça, estes em matéria infraconstitucional (inciso IV) e a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados os juízes ou tribunais (inciso V). Evidentemente que esta última hipótese produzirá efeitos vinculantes apenas em relação aos órgãos fracionários e juízes que integrem aquele tribunal. Do mesmo modo, a força vinculante dos acórdãos proferidos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas, por se tratarem de procedimentos de uniformização da jurisprudência já na segunda instância, ficará naturalmente adstrita à jurisdição do tribunal de justiça ou do tribunal regional federal. Todos os magistrados do país passarão a ter que observar tais súmulas, decisões e orientações descritas nos incisos acima Embora tal situação cause preocupação em parte da doutrina. A propósito, ver TESHEINER, José Maria Rosa. Contra os Precedentes Obrigatórios. Revista Páginas de Direito, Porto Alegre, ano 13, nº 1099, 09 de dezembro de 2013. Disponível em: http://www.tex.pro.br/home/artigos/258-artigos-dez-2013/6371-contra-os-precedentes-obrigatorios., sem ficarem desincumbidos, no entanto, de manter estrita observância ao princípio do contraditório (art. 10) e ao dever de fundamentação de todas as suas decisões (art. 489, §1º). Tal é a regra constante do § 1º do art. 927, que segue a matriz, desenhada pelo Processo Civil Constitucional, de concretização de disposições constitucionais. Com base nas normas dos arts. 5º, LV e 93, IX da Constituição da República de 1988, respectivamente, o contraditório e a fundamentação encontram, ao longo de todo o CPC, respaldo e proteção, por meio de um sem-número de institutos e nos mais variados contextos processuais, sendo este apenas um dos muitos exemplos. Em outro viés, o parágrafo seguinte se preocupa com a legitimação no processo de alteração de tese jurídica esposada em enunciado de súmula ou julgamento de casos repetitivos. Para tanto, prevê a possibilidade de prévia realização de audiências públicas, contando com a participação de pessoas, órgãos ou entidades aptas a contribuir para a rediscussão da matéria. Nota-se, com essa disposição, um prestígio por mecanismos que tragam à atividade jurisdicional, através dos amici curiae Acerca da potencial influência do amicus curiae: CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Comentários ao novo Código de Processo Civil. Capítulo V - do AMICUS CURIAE, original gentilmente cedido pelo autor., a voz daqueles que, em última análise, sofrerão os efeitos da mudança de entendimento. Trata-se de um meio, adotado pelo legislador de 2015, de combate à crise de legitimidade, sempre debatida, a respeito do único dos três Poderes do Estado cujos membros não são eleitos pela população. Sendo a alteração relativa à jurisprudência dominante do STF, de Tribunais Superiores ou oriunda de julgamento de casos repetitivos, surge a peculiaridade, trazida pelo § 3º: a possibilidade de modulação dos efeitos da alteração, com base no interesse social e no princípio da segurança jurídica das relações afetadas, o que será visto com mais detalhes no próximo tópico. Também com vistas à preservação desse princípio, bem como dos princípios da confiança e da isonomia, o parágrafo seguinte exige maior fundamentação, que deverá ser adequada e específica ao caso, para que se alterem enunciado de súmula, jurisprudência pacificada ou tese adotada em julgamento de casos repetitivos. A matéria merece relevo em particular pela sua abrangência e capacidade de afetação de um número considerável de relações jurídicas. Por fim, o § 5º do art. 927 elenca mais um dos princípios constitucionais a ser valorizado no processo: o da publicidade (art. 93, IX da Constituição). Os Tribunais ficam obrigados a publicar seus precedentes, preferencialmente pela internet, sempre de maneira organizada, por questão jurídica decidida. A lógica evidente é a de não apenas permitir o acesso do público em geral, mas fazê-lo do modo mais claro possível. Encerrando as disposições do Capítulo, coube à Lei Processual delimitar o que se deve entender por julgamento de casos repetitivos, sendo este a decisão proferida tanto em sede de incidente de resolução de demandas repetitivas (tratado no Capítulo VIII deste mesmo Título), quanto em sede de recursos especial e extraordinário repetitivos (arts. 1.036 e seguintes do Código). Também conhecido como julgamento por amostragem ou julgamento representativo da controvérsia, o julgamento de casos repetitivos tem seu objeto fixado no parágrafo único do art. 928, qual seja, apenas questão de direito material ou processual. Destarte, ficam descartadas questões de fato, como seria intuitivo concluir, pois essas são sempre repletas de particularidades e especificidades, a eliminarem qualquer pretensão de padronização. Em suma, as regras contidas no Capítulo I, do Título I, do Livro III, do novo CPC, trazem os balizamentos para a construção de um modelo de ordenamento de jurisprudência mais estável e de superior respeito aos precedentes judiciais. No que concerne, especificamente, aos mecanismos processuais destinados à formação dos precedentes de observância obrigatória, é forçoso reconhecer que sua previsão não está restrita ao já referido art. 927. Há na verdade um rol de dispositivos que formam, juntos, não um universo, mas sim um multiverso de precedentes. Cada universo é aplicável a uma determinada situação do processo, e as hipóteses são alargadas ou encurtadas de acordo com as peculiaridades de cada caso. Assim, além do art. 927, vamos encontrar no art. 332 mais uma previsão de força vinculante dos precedentes, ao contemplar a possibilidade de julgamento liminar de improcedência das pretensões que versem exclusivamente sobre questão de direito e que contrariem enunciados de súmulas do STF ou do STJ, acórdãos proferidos pelo STF ou STJ em julgamento de recursos excepcionais repetitivos, entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência e enunciado de súmula de tribunal de justiça quanto ao direito local. Esse rol é integrado, também, pelo art. 311, II, que autoriza a concessão de tutela de evidência quando as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante. Importante lembrar ainda dos artigos 496, § 4º e 521, IV, que, igualmente fazem previsão expressa do uso de precedentes para, respectivamente, dispensar a remessa necessária (quando a sentença estiver fundada em súmula de tribunal superior, acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos, entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência, ou ainda entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa) e dispensar a exigência de caução nos casos de cumprimento provisório da decisão (quando a sentença a ser provisoriamente cumprida estiver em consonância com súmula da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça ou em conformidade com acórdão proferido no julgamento de casos repetitivos). Por fim, o art. 932, que, ao tratar dos poderes monocráticos do relator, permite negar ou dar provimento a recurso que for contrário a súmula do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do próprio tribunal, acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos, ou ainda entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência. O microssistema de formação de precedentes vinculantes previsto no CPC de 2015 é composto, portanto, pelas normas gerais previstas nos artigos 926 a 928, bem como pelas disposições esparsas que regulamentam todos os mecanismos de julgamentos por amostragem acima mencionados. Observe-se, por fim, que, com relação ao uso da ferramenta da reclamação, o CPC/2015, no art. 988, traz alguma perplexidade. Numa interpretação literal, a reclamação, será cabível para: I – preservar a competência do tribunal; II – garantir a autoridade das decisões do tribunal; III — garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; IV — garantir a observância de precedente formado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência. Há, ainda, uma última hipótese de cabimento da reclamação no § 5° desse art. 988, dirigida ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça, para garantir a observância de precedente formado sob a sistemática de julgamento da repercussão geral ou de recurso especial em questão repetitiva, desde que esgotadas as instâncias ordinárias. Há aqui uma trava temporal, com o evidente objetivo de evitar uma sobrecarga aos tribunais superiores, ao mesmo tempo em que reforça o papel dos tribunais inferiores (TJ e TRF) no controle da observância dos precedentes. Mais interessante, ainda, é notar que as hipóteses previstas no art. 927, incisos IV e V, em princípio não autorizam o uso da reclamação, embora possam ser controladas pelo sistema recursal comum (apelação, agravo, embargos de declaração, recurso especial e extraordinário e embargos de divergência). Não vamos ingressar aqui na controvérsia que cerca a figura prevista no art. 496, § 4°, inciso IV do CPC/2015, que parece criar um precedente híbrido (administrativo-jurisdicional): é a hipótese do entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa. Estaria, com isso, o legislador fazendo uma diferença entre precedentes vinculantes e precedentes normativos? Ou talvez criando graus de vinculação? Poderíamos falar em precedentes vinculantes absolutos e relativos? Finalmente, haveria densidade normativa diversa entre os precedentes listados apenas no art. 927 e aqueles que constam do art. 988? Essa tese parece não fazer muito sentido pois algumas dessas hipóteses, embora não previstas no art. 988, autorizam providências concretas típicas de precedentes normativos, como a dispensa do duplo grau obrigatório ou mesmo o julgamento liminar de improcedência do pedido, nas hipóteses acima referidas. Ademais, o art. 966, V, ao prever o cabimento de ação rescisória contra decisão que violar, manifestamente, norma jurídica, e, notadamente, o § 5° desse dispositivo, acrescido pela Lei n° 13.256/2016, ao estabelecer que, na forma do referido dispositivo, integram o conceito de norma jurídica o enunciado de súmula, acórdão ou precedente previsto no art. 927, parece sinalizar, de forma clara, que não há diferença entre precedente vinculante e normativo. Ainda assim, teríamos que conviver com uma situação desconfortável. Teríamos precedentes normativos cuja força é duplamente protegida (por recurso e por ação rescisória) e outros com proteção tripla (recurso, reclamação e rescisória). Uma forma de esvaziar essa discussão, seria compreender o rol do art. 988 como exemplificativo, de modo a abarcar, ainda que implicitamente, todas as hipóteses dos universos de precedentes (arts. 311, II; 332; 496, § 4°, 521, IV, 927 e 932, todos do CPC/2015). A par destas constatações e perplexidades, considera-se que o microssistema de formação de precedentes judiciais vinculantes delineado pelo CPC/2015, ainda que careça de uma perfeita homogeneidade entre os seus mecanismos, ostenta as virtudes necessárias à promoção de superior concretude aos princípios constitucionais da segurança jurídica e da igualdade entre os jurisdicionados. Obviamente, o bom funcionamento desses sistemas de precedentes vai depender, essencialmente, da adequada e fundamentada utilização do distinguishing, pelos magistrados, e da overruling pelos tribunais que editaram os precedentes. Assim, não obstante os efeitos positivos da implementação de um sistema baseado em precedentes, é preciso ter cuidado com as distorções Chama a atenção, no entanto, o fato de os movimentos libertários, os quais há um século, apostando na vontade, derrubaram o formalismo jurídico próprio do exegetismo francês e de positivismo científico alemão, serem hoje repristinados no Brasil com ares de novidade e com o refinamento conferido pelas cláusulas gerais e por uma pseudo-constitucionalização do direito, que, na maioria das vezes, têm servido como álibi para decisionismos. Passa-se do objetivismo ao subjetivismo; da razão à vontade. É paradoxal que a doutrina dos precedentes à brasileira vise, justamente, a combater os reflexos do subjetivismo do qual ela mesma é caudatária. Mais paradoxal ainda é pretender fazê-lo com boas doses de objetivismo relativamente à interpretação de tais precedentes. Por um lado, o sistema de precedentes obrigatórios não leva em conta os fundamentos da decisão como qualificadores do seu grau de vinculação para as decisões futuras: basta que a decisão tenha sido tomada pelo Superior Tribunal de Justiça em respeito a algum procedimento capaz de conferir-lhe tal força, como, por exemplo, aquele previsto no artigo 543-C, do CPC. Vale dizer, o valor do precedente independe do seu conteúdo. O aspecto subjetivista impera nesse primeiro momento, pois não importa como se decidiu, mas, sim, que determinada matéria foi decidida. Com isso, o precedente ganha, automaticamente, força vinculante relativamente aos casos futuros. RAATZ, Igor. Precedentes Obrigatórios ou Precedentes à Brasileira?, Revista Eletrônica de Direito Processual, vol. XI, julho/2013, disponível em http://www.redp.com.br., casuísmos Por tudo o que se viu até aqui, é possível traçar algumas breves conclusões gerais. A primeira constatação que se faz presente é que o atual fenômeno de judicialização exacerbada é decorrência de disfunções próprias do modelo de Estado Democrático de Direito adotado pela Constituição. Em um país de modernidade tardia como o Brasil, as feições garantistas de um Poder Legislativo que “prometeu” transformações sociais não foram acompanhadas por um Executivo desestruturado. O resultado disso é a judicialização, pois nesse contexto o crescimento do Poder Judiciário foi visto como “o ingrediente necessário do equilíbrio dos poderes”. O Judiciário, então, gradualmente vem perdendo fôlego diante da demanda e do volume de casos a julgar. A partir disso, no que importa ao estudo aqui realizado, viu-se que uma das maneiras encontradas para remediar a situação e imprimir mais celeridade aos procedimentos foi incutir, no imaginário da comunidade jurídica, a ideia de que julgar um caso com uma simples transcrição de outro julgado anterior seria conduta legítima da atividade jurisdicional. Essa conduta é agravada ainda, pois quis-se crer que isso seria uma adoção das teorias de precedentes dos sistemas jurídicos anglo-americanos. SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Compreendendo os "precedentes" no Brasil: fundamentação de decisões com base em outras decisões. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. vol. 226, Dez/2013, p. 349. e decisionismos. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Cada caso comporta uma única solução correta?, in WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et alli (Org.) Direito Jurisprudencial, vol. II, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2014, p. 1226. 5. A modulação temporal das alterações jurisprudenciais e da superação de precedentes judiciais vinculantes A atribuição de maior força à jurisprudência e aos precedentes vinculantes traz como uma de suas consequências a necessidade de modulação temporal dos efeitos que serão gerados com a sua superação. Se, por um lado, a estabilidade e a previsibilidade das decisões judiciais, na interpretação da lei, são importantes para um sistema democrático, pois permitem que o cidadão conheça e possa confiar nos seus próprios direitos enunciados pelos textos legislativos, por outro, torna-se importante e vital para o sistema a modificação de seus precedentes diante da mudança do cenário social ou legislativo. A inspiração para a busca do instrumento processual de modulação dos efeitos de uma decisão judicial, com o objetivo de equilibrar segurança jurídica com a necessidade de mudança de entendimento judicial, encontra-se no prospective overruling do Direito norte-americano. Na doutrina desenvolvida nos Estados Unidos da América, define-se overruling como a mudança de um precedente por meio da decisão expressa de que ele não deve mais ser a regra aplicável (ou controlling law). Tal mudança tem efeitos retrospectivos, limitados apenas a algum statute of limitations, uma transação entre as partes (accord and satisfation) ou, evidente, pela ocorrência de coisa julgada (res judicata). Deste modo, o overruling de um precedente acaba por alcançar outros casos que estejam em julgamento. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Judicial Rulings with Prospective Effect. General Report on Brazilian Law. Revista de Processo. vol. 232, Jun/2014, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 275. Prospective overruling ou Sunbursting, Sunbursting é um termo atualmente pouco empregado. Surgiu no julgamento do caso Sunburst (Great Northern Railway Company v. Sunburst Oil & Refiting Company, 287 U.S. 358 [1932]) pela Suprema Corte norte-americana em 1932, onde a empresa Sunburst processava Great Northest no estado de Montana com base em um julgado da Suprema Corte daquele Estado. Quando a Supreme Court of Montana julgou o caso em 1921, ela modificou o precedente, mas limitando seus efeitos apenas a casos futuros, de modo que uma nova regra foi anunciada para outros processos que viessem a ser propostos, mas a regra antiga foi aplicada, derradeiramente, em favor da Sunburst. por sua vez, é uma técnica de julgamento que tem sido muito empregada no common law estadunidense, principalmente a partir da segunda metade do século XX, por força da pressão das necessidades sociais de se modificar a lei, sem que se colocasse em risco a sua estabilidade, capsulada na regra do stare decisis. Por prospective overruling, FAIRCHILD, Thomas E. Limitation of New Judge-Made Law to Prospective Effect Only: "Prospective Overruling" or Sunbursting. Marquette Law Review: 1968. v. 51. p. 254. Available at: <http://scholarship.law.marquette.edu/mulr/vol51/iss3/3.>. deve-se entender a postergação de produção de efeitos de uma nova regra jurídica. Trata-se, na verdade, de uma excepcional limitação do efeito retrospectivo da overruling. No Brasil, se considerarmos o aumento da importância da jurisprudência nas últimas décadas como precedente a ser seguido pelos magistrados e pelos tribunais, o prospective overruling do common law encontra similaridade no que tem sido adotado e compreendido como a aplicação de efeitos prospectivos às decisões judiciais ou, como denominado pela doutrina, a modulação temporal dos efeitos das decisões. Consiste a modulação dos efeitos em técnica processual de decisão que autoriza o tribunal a limitar, temporalmente, os efeitos das suas decisões com fundamento no princípio da segurança jurídica e no interesse público de excepcional relevo. Deste modo, uma decisão judicial cujos efeitos, em regra, seriam ex tunc, tem os seus limites temporais modificados, valendo no momento da publicação da decisão (ex nunc) ou em outro momento posterior a ela (pro futuro). O tribunal que mais tem utilizado a modulação dos efeitos de suas decisões no Brasil é o Supremo Tribunal Federal (STF), inclusive diante de sua importância no Judiciário brasileiro. Durante a realização do controle concentrado de constitucionalidade das leis, situação na qual os julgamentos do STF têm eficácia erga omnes e vinculante a todas as demais cortes federais e estaduais, o STF tem realizado a modulação dos efeitos de suas decisões com base na regra prevista no art. 27 da Lei nº 9.868/1999. “Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.” Como esta norma está em uma lei que regula “o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal”, o STF foi a primeira corte brasileira a adotar o instrumento processual de modulação temporal dos efeitos em suas decisões e depois, por analogia, o STF passou a adotá-lo no julgamento de outras ações e recursos, bem como outras cortes inferiores passaram a adotá-lo, também por analogia. De acordo com esta regra, em situações nas quais a confirmação da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade da norma legal possa vir a causar grave abalo à segurança jurídica ou ao interesse nacional, o Supremo, por maioria de dois terços de seus Ministros, tem o poder de “restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.” Diversos foram os casos em que o STF utilizou-se desta técnica processual de julgamento. Por exemplo, na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 29, julgada pelo Plenário em 16 de fevereiro de 2012, o STF julgou a constitucionalidade de lei (Lei Complementar nº 135/2010) que trouxe novas hipóteses de inelegibilidade às normas do Direito Eleitoral brasileiro com o intuito de preservar a denominada “fidelidade partidária” do candidato ao seu partido. As hipóteses de inelegibilidade instituídas pela lei foram julgadas constitucionais. Todavia, por uma questão de segurança jurídica, o STF modulou pro futuro os efeitos de sua decisão para adequá-la à norma constitucional, tornando tais hipóteses inaplicáveis às eleições anteriores, inclusive às eleições nacionais ocorridas em 2010, bem como para os mandatos políticos ainda em curso. Outro exemplo ocorreu no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.029, julgada em 08 de março de 2012. Nesta ação, questionava-se a constitucionalidade da Lei Federal nº 11.516/07, fruto da conversão em lei de uma Medida Provisória do Presidente da República, que criou o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, com poderes similares a de uma agência reguladora do meio ambiente. No julgamento desta ação, o STF entendeu que houve, sim, uma inconstitucionalidade formal da lei, uma vez que não foram respeitados os limites constitucionais para a edição de medidas provisórias pelo Presidente da República, que somente as pode fazer em caso de urgência e relevância; contudo, o STF não poderia ignorar a realidade: tratava-se de lei que criou uma autarquia para a proteção do meio ambiente (direito fundamental também previsto na Constituição) que estava, desde 2007, em funcionamento, com diversos atos normativos e administrativos já praticados. Adotou-se, neste caso, a modulação de efeitos na modalidade denominada, no common law, como “prospectividade pura” (pure prospectivity), de modo que foram “postergados os efeitos da decisão, nos termos do art. 27 da Lei nº 9.868/99, para preservar a validade e a eficácia de todas as Medidas Provisórias convertidas em Lei até a presente data, bem como daquelas atualmente em trâmite no Legislativo.” Percebe-se, portanto, que, até a entrada em vigor do CPC/2015, a técnica de modulação temporal dos efeitos das decisões judiciais vem sendo utilizada, majoritariamente, nas hipóteses de mera interpretação de normas quanto à sua constitucionalidade ou não, material ou formal, como se vê no sistema de controle concentrado de constitucionalidade das leis a cargo do STF. Aliás, percebe-se claramente que, no Brasil, a técnica dos efeitos prospectivos das decisões judiciais foi originalmente criada, justamente, a partir da teoria da nulidade dos atos inconstitucionais. Entretanto, atualmente, o STF também tem aplicado a técnica de efeitos prospectivos no sistema de controle difuso de constitucionalidade, quando profere decisões em recursos oriundos de outros tribunais nos quais se questiona a constitucionalidade de leis. Ao ser julgado um recurso extraordinário no STF, os efeitos de seu julgamento, em regra, serão apenas intra partes, isto é, limitados àqueles litigantes. Excepcionalmente, diante da importância do tema, os julgamentos de recursos em controle difuso no STF poderão ter efeitos vinculantes, de modo que o resultado seja erga omnes, oponível a todos. Em ambas as situações, poderá o STF também modular temporalmente os efeitos de sua decisão, empregando-lhe efeitos prospectivos. A primeira aplicação pelo STF desta técnica prevista no art. 27 da Lei nº 9.868/1999 em sede de controle difuso de constitucionalidade deu-se no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 197.917, em 06 de junho de 2002, onde se questionava uma lei de determinado município que fixou o número de seus vereadores em desacordo com as normas da Constituição Federal. Apesar da inconstitucionalidade da lei, o STF entendeu que, se a inconstitucionalidade fosse declarada ex tunc, estar-se-ia diante de uma situação de grave insegurança jurídica, uma vez que a validade das deliberações tomadas por aquela Câmara Municipal, durante a vigência da lei, estaria comprometida, visto que a composição da Câmara seria diferente. Portanto, para se evitar este quadro de insegurança jurídica, o STF modulou os efeitos da decisão apenas para o final da legislatura municipal. Contudo, ao analisar este e outros julgamentos similares, nota-se uma tendência nociva do STF de se permitir o pedido tardio de modulação dos efeitos da decisão judicial apenas quando politicamente conveniente. No CC nº 7.204-1, o Supremo Tribunal Federal modificou o seu entendimento a respeito da competência para o julgamento de ações em que é pleiteada indenização por danos materiais e morais decorrentes de acidente de trabalho, passando-a da Justiça Comum (i.e., dos Estados) para a Justiça do Trabalho. Todavia, em homenagem à segurança e à administração da justiça, definiu que o novo entendimento vigoraria a partir da Emenda Constitucional nº 45 de 2004, que modificou a regra constitucional de competência destas ações. Os processos que estivessem em curso perante a Justiça Estadual, nos quais já tivesse sido prolatada sentença de mérito, naquela permaneceriam. Por outro lado, os processos que ainda não tivessem sido julgados no mérito seriam transferidos para a Justiça do Trabalho, aproveitando-se os atos processuais praticados até então. Como visto, a atribuição de eficácia prospectiva ao novo precedente é permeada por debates em torno de questões de diferentes ordens, ora recomendando, ora desautorizando a sua aplicação, o que demonstra a atualidade e a complexidade do tema. Dentre as principais vantagens atribuídas à eficácia prospectiva, podemos elencar: PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Judicial Rulings with Prospective Effect. General Report on Brazilian Law. Revista de Processo, vol. 232, Jun/2014, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 282. (i) Permite remediar interpretação jurisprudencial considerada obsoleta: As decisões judiciais devem se harmonizar com os valores sociais e políticos vigentes, de modo a fazer justiça e, com isso, inclusive, legitimar a função jurisdicional. Desse modo, ocorrendo mudanças sociais e políticas significativas, que tornem o precedente obsoleto e ultrapassado, inapto a refletir a atual conjuntura, faz-se necessário revê-lo. A manutenção do precedente, em tais circunstâncias, geraria insatisfação por parte dos cidadãos e comprometeria a isonomia substancial entre eles, uma vez que novas situações jurídicas, deflagradas sob a égide do novo cenário sócio-político, seriam julgadas sob a mesma moldura anterior, fomentando o sentimento de injustiça e desconfiança. Desse modo, a atribuição de efeitos prospectivos ao novo precedente viria alcançar apenas as novas situações jurídicas, ocorridas após ser firmado o novo precedente. Por outro lado, a aplicação do novo precedente a situações pretéritas (full retroactive application), Cumpre, nesse momento, distinguir as diferentes modalidades de eficácia atribuídas aos precedentes. Eficácia retroativa plena ou pura (full retroactive application): aplicação do novo precedente a todos os casos passados e futuros, inclusive aqueles já transitados em julgado. Retroativa parcial (partial retroactive application): a nova doutrina regula todas as novas demandas, salvo aquelas cujo julgamento já se tenha concluído em caráter final ou cuja reapreciação seja limitada por outras disposições normativas. Eficácia prospectiva pura (full prospective application): a nova regra só incidirá sobre situações configuradas a partir da data de sua afirmação ou determinado evento futuro, não atingindo nem mesmo as partes do caso que ensejou sua formulação, o caso em julgamento e os eventos ocorridos anteriormente permanecerão regidos pelo entendimento antigo. Eficácia prospectiva parcial (partial prospective application): o novo precedente deve ser aplicado ao caso em julgamento e aos fatos ocorridos posteriormente, mas não aos anteriores. Prospective Prospectivity: aplicação do novo precedente a partir de um dado momento no futuro. MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes – O desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 261. anteriores à nova configuração social e política, também se mostraria injusta por dois motivos. Primeiramente, em razão de terem eclodido sob o pálio da conjuntura sócio-política pretérita, em relação à qual o precedente anterior se mostrava adequado. Em segundo lugar, a atribuição de efeito prospectivo resguarda a legítima confiança dos cidadãos no sistema de precedentes, na medida em que eles preordenam suas condutas e relações em função do precedente em vigor. Desse modo, há casos em que a atribuição de efeitos retroativos consistiria em fator surpresa, surpreendendo os cidadãos que já haviam entabulado relações em consonância com o precedente em vigor à época e vulnerando a sua confiança. (ii) Resguarda a segurança jurídica e a confiança depositada pelos cidadãos em determinada linha jurisprudencial: O sistema dos precedentes desperta nos cidadãos a legítima confiança no sentido de que podem pautar as suas condutas e relações segundo os parâmetros traçados no entendimento jurisprudencial em vigor. Afirma-se que essa confiança decorre, em grande medida, da estabilidade dos precedentes, ou seja, da propensão à sua manutenção ao longo dos tempos. No entanto, é preciso acrescentar que, conforme analisado no item anterior, há situações em que a manutenção do precedente pode gerar violação aos valores da justiça e da isonomia, sendo imperativa a sua revisão. Sendo relevantes os motivos que justificam a revisão do precedente, será recomendável a sua superação, o que não representará, por si só, vulneração da estabilidade. Ao lado da estabilidade deve ser considerada a previsibilidade, como fatores fundamentais para a segurança jurídica. Assim sendo, a atribuição de efeitos prospectivos ao precedente, de modo que este seja aplicado apenas a casos futuros, reforça a confiança dos cidadãos no sistema, resguardando aqueles que pautaram suas relações segundo os parâmetros estabelecidos pelo precedente vigente à época. E pode haver uma situação consolidada com base na interpretação normativa anterior, o que desautorizaria a aplicação de efeitos retroativos. A propósito, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2240, Supremo Tribunal Federal. Pleno. ADIn 2.240, Relator Ministro Eros Grau. Diário de Justiça Eletrônico de 03/08/2007. o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da Lei 7.619 do estado da Bahia, que criara um novo município, mas sem decretar a sua nulidade, mantendo a sua vigência pelo prazo de vinte e quatro meses. Ou seja, a Corte Constitucional brasileira optou por fixar um prazo no futuro a partir do qual a nova lei seria nula. Até então, ficam resguardadas as situações jurídicas estabelecidas sob a égide da lei inconstitucional. Por outro lado, a aplicação do novo entendimento até mesmo a sentenças transitadas em julgado (full retroactive application) comprometeria a administração da justiça, pois ensejaria forte litigiosidade, com a reabertura de casos definitivamente julgados, e desestimularia os tribunais inferiores de aplicarem os precedentes, pois estes sempre poderiam ser alterados, alcançando as decisões anteriores que regularmente o aplicaram, enquanto vigentes. Por conseguinte, o prospective overruling pode ser um instrumento a favor da segurança e da confiança no sistema dos precedentes. (iii) A implantação de uma nova política pública se projeta precisamente sobre o futuro, sendo, não raro, dispensável conferir-se efeitos retroativos. Com certa frequência, a formação de um novo entendimento acerca de dada matéria refere-se à implantação de uma nova política pública, que deverá ser aplicada no futuro. Nesse passo, seria até mesmo desnecessário atribuir eficácia retroativa ao precedente judicial, mostrando-se mais adequado aplicar a eficácia prospectiva. Por outro lado, são apontadas como desvantagens ou críticas ao prospective overruling: (i) Uma resolução judicial com eficácia meramente prospectiva seria apenas um obiter dictum: Critica-se o prospective overruling, mais precisamente o full prospective application, no qual o novo precedente não é aplicado ao caso em que ficou assentado o novo entendimento, mas apenas a casos futuros. Argumenta-se que mais se assemelharia ao obiter dictum, ou seja, a considerações tecidas durante o julgamento do caso, mas que são desinfluentes para a sua solução. Entende-se que essa postura desestimula os cidadãos a apresentarem novos argumentos e pleitear a revisão do precedente, tendo em vista que não seriam, eles mesmos, beneficiados com o acolhimento de seus argumentos. O acomodamento dos cidadãos contribuiria, a longo prazo, para a cristalização dos precedentes em vigor e, por conseguinte, para que estes se tornassem obsoletos, o que comprometeria a confiança dos cidadãos no sistema de precedentes e aumentaria a sensação de injustiça. Em contrapartida, a favor do prospective overruling, sustenta-se ser possível adotar o chamado partial prospective application, em que o novo precedente é aplicado ao caso concreto no qual foi assentado e também a casos futuros, o que contornaria a crítica acima. Cumpre consignar que a escolha entre a adoção de efeitos total ou parcialmente prospectivos depende da prudente avaliação do órgão julgador, mediante a ponderação entre, de um lado, a preservação da estabilidade e da previsibilidade dos precedentes, que desautorizaria a sua imediata aplicação ao caso concreto, e, de outro lado, beneficiar os litigantes com o novo entendimento firmado a partir de seus argumentos. Deve-se considerar que, em um litígio, há interesses contrapostos, sendo provável que a adoção do novo entendimento ao caso concreto em exame atenda aos interesses de apenas um dos litigantes, tomando de surpresa o outro, que se pautara pelo precedente anterior. (ii) A função jurisdicional está precipuamente dirigida para a produção de decisões retroativas: A atuação dos órgãos jurisdicionais volta-se principalmente para decidir situações ocorridas anteriormente, razão pela qual a eficácia retroativa lhe seria inerente. A aplicação de efeitos prospectivos a decisões judiciais viria contrariar a própria essência da função jurisdicional, fazendo-a aproximar-se da função própria do Poder Legislativo, na edição de leis, com efeitos projetados para o futuro. No entanto, apresenta-se, como contra-argumento, que a função dos Tribunais Constitucionais é não apenas julgar o caso concreto, mas também zelar pela integridade do ordenamento constitucional. A aplicação de efeito retroativo a determinados precedentes pode comprometer a legítima confiança dos cidadãos e a previsibilidade, conforme esclarecido antes, sendo papel do Poder Judiciário estar atento a essas circunstâncias, a fim de cumprir adequadamente com o seu papel e atuar com justiça. Acrescente-se, por fim, que a full retroactive application permite que o novo precedente alcance, inclusive, sentenças transitadas em julgado, o que vulnera a unicidade da jurisdição e é fortemente criticado pela doutrina. GRECO, Leonardo. A declaração de constitucionalidade da lei pelo STF em controle concentrado e a coisa julgada anterior – análise do Parecer 492 da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. In Revista Eletrônica de Direito Processual, v. IX, ano 6. Jan-jun 2012. www.redp.com.br, p. 117. A jurisprudência, apesar de não ser formalmente reconhecida dentre as fontes do direito, deve, hoje, ser considerada como se fosse, inclusive diante de sua crescente importância no Processo brasileiro. Ao interpretarem normas jurídicas, especialmente quando conferem efeitos prospectivos ao novo entendimento formado, os tribunais criam o direito. A sua negação chega a ser considerada uma “ficção” pela doutrina. Todas as vezes que o tribunal altera o entendimento jurisprudencial firmado acerca de determinada matéria, está presente, indubitavelmente, um “efeito normativo” com reflexos, diretos e indiretos, na comunidade jurídica e em toda sociedade. Negar o poder criativo da jurisprudência e erigi-lo a obstáculo intransponível pode acabar por impedir os tribunais de rever interpretações equivocadas ou obsoletas, compelindo-o a compactuar e perpetuar injustiças e, consequentemente, não se desincumbindo de sua função. Através da interpretação das normas e da formação da jurisprudência, os tribunais podem melhorar o sistema jurídico. No entanto, não se trata de converter os tribunais em julgadores ilimitados, até mesmo porque não é subtraído do Legislativo o poder de editar novas normas, até mesmo contrárias ao entendimento jurisprudencial firmado acerca da lei revogada. A lei (e, em especial, a Constituição Federal) consiste no limite da atividade interpretativa dos tribunais, de modo que não há incompatibilidade, senão complementaridade entre as funções legislativa e jurisdicional. A interpretação pelos tribunais vem se harmonizar e se integrar à lei criada pelos legisladores. Portanto, a aplicação de efeitos prospectivos à função interpretativa dos tribunais deve-se à prudente ponderação entre os valores envolvidos, prestigiando-se a legítima confiança dos cidadãos, a previsibilidade e a segurança jurídica, que são indispensáveis ao Estado Democrático de Direito. A aplicação cega e incondicional de efeitos retroativos poderia, em determinados casos concretos, trazer prejuízos não apenas aos cidadãos diretamente sujeitos à aplicação da respectiva norma, mas à própria legitimidade do Poder Judiciário e do ordenamento jurídico em vigor. 6. Considerações finais Resta fora de dúvida que o CPC de 2015 muito avançou no sentido da implementação de uma jurisprudência mais uniforme, estável, coerente e, em não raras hipóteses, vinculante. Para tal desiderato, o novo Código amplia e aperfeiçoa os mecanismos processuais de julgamento por amostragem já existentes, atribuindo-lhes efeitos verdadeiramente vinculantes. A decisões proferidas sob a sistemática de tais instrumentos ostentam, a nosso ver, a natureza de decisões definidoras de teses jurídicas, as quais foram tratadas ao longo do texto como precedentes judiciais vinculantes apenas em razão da já tradicional nomenclatura adotada pela doutrina e empregada em diversos dispositivos do CPC de 2015. A despeito desta imprecisão terminológica quanto ao produto final dos julgamentos por amostragem, o aspecto mais relevante a se considerar é o de que o novo Código estabelece um verdadeiro microssistema destinado à pacificação de controvérsias jurídicas que se repetem em inúmeras ações ou recursos. 7. Referências BARCELLOS, Ana Paula de. Voltando ao básico. Precedentes, uniformidade, coerência e isonomia. Algumas reflexões sobre o dever de motivação. In: Direito Jurisprudencial: volume II. Coords. Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, Luiz Guilherme Marinoni, Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 143-165, 2014. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Súmula, jurisprudência, precedente: uma escalada e seus riscos. In: Temas de direito processual (nona série). São Paulo: Saraiva, 2007. BENETI, Sidnei. O Nurer – Núcleo de Recursos Repetitivos do STJ e o novo recurso especial. In: O papel da jurisprudência do STJ. Coordenação Isabel Gallotti...(et al.). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Comentários ao novo Código de Processo Civil. Capítulo V - do AMICUS CURIAE, original gentilmente cedido pelo autor. COLE, Charles D. Precedente Judicial – A experiência americana. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. Revista de Processo, n. 92, out-dez/1998. CROSS, Rupert e HARRIS, J.W. Precedent in English Law, 4. ed., Oxford: Clarendon Press, 1991. DANTAS, Bruno. Teoria dos recursos repetitivos: tutela pluri-individual nos recursos dirigidos ao STF e STJ (art. 543-B e 543-C do CPC). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. DUARTE, Antonio Aurelio Abi-Ramia; BRASIL, Maria Eduarda de Oliveira, O desafio de uniformizar a jurisprudência e o papel do Código de Processo Civil de 2015 – Novos Desafios, original cedido pelos autores. FAIRCHILD, Thomas E. Limitation of New Judge-Made Law to Prospective Effect Only: "Prospective Overruling" or Sunbursting. Marquette Law Review: 1968. v. 51. p. 254. Available at: http://scholarship.law.marquette.edu/mulr/vol51/iss3/3. FINE, Toni Jaeger. Stare Decisis and the binding nature of precedent in the United States of America. In: MOURA, Solange Ferreira de. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Coletânea de artigos científicos: celebração ao XIV Intercâmbio dos cursos de Direito da Estácio, Santa Cruz do Sul: Essere nel mondo, 2014, pp. 148/167. GRECO, Leonardo. Novas Súmulas do STF e alguns reflexos sobre o mandado de segurança. Disponível em <http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=238>. Acesso em 10/06/2015. ______. A declaração de constitucionalidade da lei pelo STF em controle concentrado e a coisa julgada anterior – análise do Parecer 492 da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. In Revista Eletrônica de Direito Processual, v. IX, ano 6. Jan-jun 2012. www.redp.com.br. HAZARD JR., Geoffrey C. TARUFFO, Michele. American Civil Procedure, an introduction. New Haven: Yale Press, 1993. MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes – O desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. NOGUEIRA, Gustavo Santana. Stare decisis et non quieta movere: a vinculação aos precedentes no direito comparado e brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Judicial Rulings with Prospective Effect. General Report on Brazilian Law. Revista de Processo, vol. 232, Jun/2014, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014 ROSSI, Júlio César. O precedente à brasileira: súmula vinculante e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 208, 2012. SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Compreendendo os "precedentes" no Brasil: fundamentação de decisões com base em outras decisões. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. vol. 226, Dez/2013. TARUFFO, Michele. La giurisprudenza tra casistica e uniformità. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, et alli. (Coord.) Direito Jurisprudencial: volume II. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 927-937. ______. Le funzioni delle corti supreme tra uniformità e giustizia. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. v. XIV, p. 438-449. Disponível em <http://www.redp.com.br/arquivos/redp_14a_edicao.pdf>. Acesso em: 05 jan 2015. ______. Precedentes e jurisprudência. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 199, 2011. ______. Dimensioni del precedente giudiziario. Revista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 1994 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e Adaptabilidade como objetivos do direito: civil law e common law. In: Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, Vol. 172, ano 34, jun. 2009. ZANETI JR., Hermes. Precedentes (treat like cases alike) e o novo código de processo civil; universalização e vinculação horizontal como critérios de racionalidade e a negação da “jurisprudência persuasiva” como base para uma teoria e dogmática dos precedentes no Brasil. Revista de Processo. v. 235. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014 ZWEIGERT, Konrad e KÖTZ, Hein. In: Civil litigation in comparative context. CHASE, Oscar G. Oscar G. Chase and Helen Hershkoff General Editors. Thomson West, 2007.