• Lia Rizzo
Atualizado em
concept image of a man whistling at women coworker depicting sexual harassment at work (Foto: Getty Images/Collection Mix: Sub)

Assédio é violência de gênero que mais atinge mulheres em todo o mundo  (Foto: Getty Images/Collection Mix: Sub)

É preciso falar (mais) sobre assédio sexual. Há pouco mais de um ano, uma ampla pesquisa do Instituto IPSOS, encomendada pela L´Oreal, constatou que a prática de assédio, sobretudo em espaços públicos, já é a violência mais recorrente contra mulheres e meninas no mundo todo: 78% delas afirmaram já terem sido vítimas de assediadores nas ruas ou em locais abertos. Outro levantamento, conduzido neste pela Plan International, mostrou a dimensão do problema também na Internet. Oito em cada dez meninas entre 15 e 25 anos declararam ter sofrido assédio em ambientes online. E ocorrências de assédio sexual ainda engrossaram a lista de violações contra mulheres que cresceram durante a pandemia.

Para a advogada criminal Izabella Borges, que atua na defesa de alguns dos mais célebres casos de violência contra mulheres ocorridos nos últimos meses - como o da influencer Duda Reis -  ajudam a explicar este cenário. “Os números de ocorrências aumentaram no período da pandemia, em decorrência de aspectos já muito falados como o aumento da convivência entre as vítimas e seus agressores, ansiedade generalizada e o crescimento da desigualdade”, lembra a advogada. “E outro ponto importante é o maior acesso ao conhecimento sobre as formas de violência, que leva mais mulheres a denunciar”.

Adicionalmente, segundo Alice Bianchini, doutora em direito penal e especialista em violência de gênero, há que se considerar os avanços na legislação que vem preenchendo lacunas na tipificação de crimes contra mulheres e contribuem para que as ocorrências sejam registradas e os agressores punidos. Porém, faz um alerta: “a palavra assédio, no sentido jurídico, implica em sempre haver uma relação de poder. O que chamamos de assédio coloquialmente não é a mesma coisa no âmbito legal”. E completa: “o assédio acontece quando se tem uma relação trabalhista ou educacional. Então, quase não temos registros desta ocorrência de crimes, que acabam contornados dentro das empresas”.

Alice Bianchini (Foto: Divulgação)

Alice Bianchini (Foto: Divulgação)

Violência de gênero é fenômeno estrutural

Em todos os âmbitos, no entanto, há algo em comum aos diversos tipos de violência de gênero, entendidas como assédio pela maioria de nós: a manutenção dos papéis desempenhados por homens e mulheres que impulsionam as desigualdades entre eles. “Não só no aspecto econômico, mas também em relação ao papel de cada um na sociedade, que resulta numa condição em que elas sempre estão em condição de inferioridade”, explica Alice.

É preciso lembrar da cena que dias atrás deixou o país perplexo, em que uma mulher pedalava por uma rua, quando um carro se aproximou. Sem nenhuma cerimônia, o rapaz sentado no banco do passageiro colocou o braço para fora e, assim que o veículo praticamente encostou ao lado da bicicleta, a ciclista recebeu uma apalpada nas nádegas. Meses antes, diante de quem quisesse ver - e em uma ação também filmada - a deputada Isa Penna teve os seios tocados por um colega parlamentar durante uma sessão.

“Nos choca a naturalidade com a qual o toque nesses corpos se revelam, em claras demonstrações de como os corpos femininos, há milênios, vem sendo compreendidos como espaço para a livre satisfação do prazer masculino”, destaca Izabella Borges. Uma naturalização que, em Crimes Contra Mulheres, livro que Alice Bianchini assina em conjunto com as promotoras de justiça Mariana Bazzo e Silvia Chakian, é explicada também pela supervalorização histórica dos papéis masculinos em detrimento dos femininos e de modelos de comportamento e códigos de conduta permissivos, que se convertem em violência de toda natureza contra mulheres.
 

Assédio ou importunação?

Em maio deste ano, a lei que tipificou o assédio sexual completou 20 anos. Ela passou a vigorar quando um artigo foi acrescentado ao Código Penal (Art. 216-A), estabelecendo como crime de assédio sexual "constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função". A pena, nestes casos, é de detenção de um a dois anos.

Embora tenha sido um claro avanço no combate à violência de gênero no país, à época a lei foi criticada por juristas que a classificaram como apenas mais uma iniciativa punitivista. “Esses argumentos se baseavam no fato de já serem previstos na legislação o crime contra honra, por exemplo, que pode tipificar situações entendidas como assédio. Mas ainda é preciso tapar lacunas, então cada passo é importante”, afirma Alice Bianchini.

Neste sentido, mais recentemente, em 2018 para ser exata, muitas outras lacunas foram preenchidas a partir da Lei de Importunação Sexual, que tornou crime “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”, com pena maior que a prevista na Lei do Assédio, podendo variar de um a cinco anos de prisão. “Esta foi uma inclusão muito relevante, pois antes dela, tocar as partes íntimas de uma mulher ou até mesmo se masturbar sem consentimento da vítima, como aconteceu no famoso caso do metrô de São Paulo, não gerava grandes consequências para o sujeito que praticava os atos”, explica Izabella.

Izabella Borges (Foto: Divulgação)

Izabella Borges (Foto: Divulgação)


De que estamos diante?

A partir de hoje, Vogue apresenta uma série de matérias sobre a cultura do assédio, qual o papel de todos no combate a este tipo de violência e diante de que desafios nos encontramos, mesmo que mais mulheres se sintam encorajadas a denunciar e a Legislação tenha avançado. “Há muito para ser feito ainda”, afirma Izabella Borges. “Não adianta ter leis para assegurar direitos e liberdade sexual, se não temos, por exemplo, agentes públicos preparados para lidar com as peculiaridades e circunstâncias do crime”. “É preciso também abolir termos como “abuso”, palavra já muito contestada pois não estamos falando de situações inconvenientes, mas de crime”, reforça Alice Bianchini.

Para ambas as juristas, o correto entendimento da ocorrência, do tipo de violência, é fundamental inclusive na hora do registro que, sim, deve ser feito em uma delegacia. Por se tratar de violações que nem sempre são filmadas, as investigações e coletas de provas são determinantes para que o agressor seja punido. “A interpretação na hora do registro pode comprometer essa investigação e, portanto, o desfecho do caso”, aponta Alice.

Para Izabella, também é preciso deixar de romantizar a denúncia. “Denunciar não é fácil. A mulher, via de regra, reluta em denunciar e vive angustiada. E quando essa mulher decide denunciar ela movimenta muitos esforços internos. Então precisamos que ela se sinta verdadeiramente acolhida pela empresa quando o assédio acontece lá dentro, pelos agentes públicos que a atendem ou que atuam nos processos judiciais, como juízes, promotores e serventuários públicos”, completa.